Freud
lê… "O olho de vidro de meu avô"
As
palavras guardam um universo inteiro dentro delas. Hoje, especialmente, quero
falar de algumas histórias que apresentam os avós como personagens centrais.
Freud afirmava que a "construção subjetiva de um indivíduo está
invariavelmente envolvida com algo mais, como um modelo, um objeto, um
oponente, um auxiliar, de maneira que, desde o princípio das relações mais
primitivas da infância, poderíamos dizer que a psicologia individual é também
psicologia social" (ZANETTI, 2009). Desde então, o conceito de transmissão
psíquica incorporou-se à Psicanálise. Nesse sentido, os avós são figuras
fundamentais quando pensamos na construção da subjetividade do indivíduo.
O
escritor Bartolomeu Campos Queirós nos traz em algumas de suas obras a figura
de seus avós materno e paterno. Falaremos inicialmente sobre a obra "O
olho de vidro do meu avô", na qual o narrador em primeira pessoa nos
apresenta seu avô materno. Logo no início da narrativa, o menino nos conta
sobre esse olho de vidro, que não vê, mas que imagina o mundo. O avô tinha
perdido esse olho e foi preciso colocar um olho de vidro no lugar, então o neto
acreditava que avô via o mundo pela metade. A história tem um ritmo lento,
avança devagar pela história do avô. A ausência do olho de 'verdade'
encaminha-nos para a dualidade ‘ver-imaginar’, o olho que via o
mundo era o do presente e o de 'mentira', o passado. E o menino nadava na
imaginação tentando adivinhar o que o avô sonhava, fascinado pela possibilidade
de o avô ver o passado e o futuro:
"Meu
avô imaginava sempre, eu acreditava. Vencia as horas lerdas deixando o mundo
invadi-lo por inteiro. Ele hospedava essa visita sem espanto. Saboreava o mundo
com antiga fome. O que seu olho de vidro não via, ele fantasiava. E inventava
bonito, pois eram da cor do mar os seus olhos. Tudo cabe dentro de sua
imensidão: viagens, sonhos, partidas, chegadas, mergulhos e afogamentos."
Esse
tema passado e futuro vem nos acompanhando nas leituras anteriores aqui no
Freud lê, talvez porque esse venha sendo o percurso que tem me mobilizado
atualmente. Uma vez ouvi que aquilo que fomos na infância vai indo um pouco
embora quando as pessoas que partilharam conosco essa fase da vida nos deixam.
Nunca conheci meus avôs, convivi apenas com minhas avós e a partida delas
trouxe-me ainda mais essa experiência de que o que vivemos juntas ficou
registrado no espaço da memória, algo que pode ser revisitado em fotografias
(elementos concretos que presentificam o passado) ou mesmo no relato
desses acontecimentos, mas uma parte da memória do que compartilhamos, algo que
estaria entre o que me tornei a partir desse convívio, dos traços que trago em
mim que são delas perde-se em meu consciente, mantendo-se em mim sem que eu
possa, às vezes, reconhecer:
"Poucas
vezes estive na casa de meu avô. Nunca por longo tempo. Chegava e brincava de
não querer saber de nada e acabava sabendo de tudo. Eu era curioso e guardava
cada minúcia na memória. Coisas no princípio confusas, eu só vim costurar mais
tarde. A memória é uma faca de dois gumes. Ela guarda fatos que me alegram em
recordar, mas também outros que desejaria esquecer, para sempre. A memória é
como cobra: morde e sopra."
Esse
avô aparece inicialmente em outra obra do mesmo autor, "Indez". Nesta
história, há um narrador em terceira pessoa contando a infância de Antônio, um
menino que vivia afastado da cidade com sua família, tendo conhecido seu avô
apenas pelo "olho de vidro"guardado pela mãe:
"Mas
não restou apenas o olho do avô espiando. Outras lembranças ficaram: a bengala
de cabo de prata, o chapéu preto, a gravata, e mais sua vaidade tão presente no
corpo da mãe. Antônio imaginava o avô no céu, olhando Deus com um só olho. O
outro não dormia nem mesmo dentro da bolsa da mãe."
O
narrador nos apresenta os elementos concretos em que a figura do avô se faz
presente, os objetos mantém a figura do avô na família, assim como a vaidade
presente na mãe marca a intersubjetividade desse pai na vida dela.
A
Psicanálise passou a ocupar-se da transmissão psíquica entre gerações depois
que Freud estudou estruturas, processos e construções que estivessem
relacionadas à constituição subjetiva individual, pois muitos aspectos
levaram-no da estrutura psíquica individual para uma constituição embasada nas
relações com os outros, ou seja, a subjetividade se constitui e se modifica no
laço social. Nesse sentido, reconhecer os elementos que nos compõem a partir do
outro passou a ser uma forma de nos reconhecer em nossa subjetividade, e os
avós vêm compor os vínculos primários que se estabelecem entre nós e o mundo.
Notamos
que podemos mergulhar no passado e na casa desse avô do personagem, por
exemplo, viver junto com o narrador e o menino Antônio as lembranças e carinho
ali guardados. Quando li esse livro pela primeira vez, pude reconhecer tantos
cheiros, crendices que fizeram parte da minha infância e essa é a riqueza que
continuo encontrando na leitura, na literatura : o encontro comigo mesma
através da lente e dos olhos dos autores.
Autoria: Glaucia Luiz Gotardo - psicóloga e mestre em Letras
Revisão e ilustração: Sônia Maria de Carvalho Pinto - artista plástica e doutora em Filosofia
Quer saber mais? Acesse:
http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8156/tde-02102007-142335/pt-br.php
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-65642009000100006&lng=pt&tlng=pt
Autoria: Glaucia Luiz Gotardo - psicóloga e mestre em Letras
Revisão e ilustração: Sônia Maria de Carvalho Pinto - artista plástica e doutora em Filosofia
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http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8156/tde-02102007-142335/pt-br.php
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